Não penses. Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar. Pensar é trocar uma flor por um silogismo, um vivo por um morto. Pensar é não ver. Olha apenas, vê. Está um dia enorme de sol. Talvez que de noite, acabou-se, como diz o filósofo da ave de Minerva. Mas não agora. Há alegria bastante para se não pensar, que é coisa sempre triste. Olha, escuta. Nas passagens de nível, havia um aviso de «pare, escute, olhe» com vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros. Não penses, que é sacrilégio.
Vergílio Ferreira
Raio de mania esta de querer estar sempre a pensar, raio de mania esta a minha. Um botão constantemente ligado. Até a dormir. É um silogismo. Um morto. É a minha miopia. É o nevoeiro, quando há sol. Nem de noite se acaba. Um botão constantemente ligado. O filósofo da ave Minerva devia dormir bem. Não há alegria suficiente para deixar de pensar. Há até alguma alegria no pensar constante. Nas minhas passagens de nível, há um aviso de «pare, escute e pense» enquanto sou sucessivamente atropelada por comboios encomendados por mim. Há nevoeiro a maior parte dos dias. Ponho os óculos de sol. Os pássaros enervam-me com o seu chilrear. Pensar é o melhor dos meus sacrilégios. Um botão constantemente ligado.
Rita Roberto
sexta-feira, 19 de julho de 2013
domingo, 7 de julho de 2013
Essa miúda
Há dez anos atrás estava tão longe de onde estou agora. Estava
a fazer algo que mudaria a minha vida para sempre de uma forma que não podia
imaginar. E olho para mim e é como se estivesse a olhar para a vida de outra
pessoa. Como se aquela pessoa não fosse eu, como se esta pessoa não fosse mais
aquela. Aquela pessoa desejava tudo o que esta tem, ia-se a baixo por achar que
nunca conseguiria. Esta pessoa vai-se a baixo por ter o que tem e não saber se é
o que quer. Talvez o que nos separe não seja assim tão diferente. A essência
será sempre a mesma. Por um lado, era mais feliz quando não sabia muitas
coisas. Por outro, consigo ser mais feliz agora que as sei. São dois tipos de
felicidades diferentes. E a ponte que as une é frágil e estreita. É um longo e árduo
caminho que teve de ser percorrido. Foi feito a escrever, a falar, a procurar
ajuda, alguma compressão, a dançar. Na maior parte das vezes nada ajudou. Fiz a
travessia uma vezes a rir, outras a chorar, a correr, a arrastar-me. Ninguém me
disse que ia ser fácil, mas ninguém me disse que ia ser tão difícil. Acabada a
travessia coloquei-me na posição das acrobatas chinesas. Primeiro nível concluído,
algumas vezes com mérito, outras nem tanto. O mérito é o que menos me importa.
Mas aquela miúda, aquela miúda era gira, insegura, ouvia música diferente da
que esta ouve agora, tinha ideais diferentes... Aquela miúda projectou nesta determinadas
coisas que nunca aconteceram, coisas que eram suposto, que ela achava
apropriadas. Esta miúda adora que não tenham acontecido e percebe que gosta
desta leveza, de continuar a ter essência da outra miúda. Há muitas situações em
que a distância entre nós não é assim tão grande. Aquela miúda era mesmo só
isso, uma miúda, muito mais miúda do que devia ser para a idade. O coração a
formar-se, o cérebro baralhado. Essa miúda esperou, esperou, esperou. O coração
não estava a formar-se, apenas era assim e o cérebro ainda se baralha às vezes. Somos diferentes. Somos.
Mas os processos químicos continuam a ser os mesmos. Aquela miúda sorri-a sem
parar, esta contempla-a numa introspecção maior.
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