Era mais uma manhã daquelas em que o meu optimismo dizia que
45 minutos chegavam para todos os afazeres matinais. Acordar. Voltar a
adormecer. Voltar a acordar. Pôr o despertador a tocar para dali a dez minutos.
Tentar adormecer e ficar na contagem decrescente para o despertador. Dentro de
oito minutos vou acordar. Cinco. Dois e meio. Toca a musiqueta. Vou aos tombos
em direcção à casa de banho, mas a gata não me deixa entrar, encaminha-me para
a cozinha. É lá que está a comida dela. Com um olho aberto e outro fechado abro a
lata de comida, dou-lhe metade, fico enojada quando aquele molho gelatinoso com
cheiro a hálito de gato, que por sua vez, cheira a comida de tartaruga, se me
cola aos dedos. Mudo-lhe a água. Lavo as mãos. A cretina já nem dá pela minha
presença, já atingiu o objectivo pretendido: comer. Retomo o caminho, aos
tombos, para a casa de banho. Ligo o aquecedor. Dispo-me e entro na banheira.
Tenho que esperar. A água demora a ficar bem misturada no chuveiro. Se entrar
logo sinto claramente os pingos de água quente do lado esquerdo do chuveiro e os
pingos frios do lado direito. Os pingos fundem-se uns nos outros como uma chuva
de alfinetes. Sou a pessoa mais feliz do mundo durante os cinco segundos em que a água quente me desce pelas costas e me faz ter um arrepio pelo corpo.
Deixa-te de merdas. Despacha-te. Lavo o cabelo com amaciador abundante. Merda.
É amaciador. Dá para as pessoas que fazem as embalagens pensarem nas pessoas
que têm miopia? Será assim tão difícil fazer o frasco do amaciador diferente do
frasco do champô? Tiro o amaciador. Lavo com champô. Meto o amaciador. Volto a tirar. Gel de banho. Acabo e
fecho as torneiras. A roupa. Aquela que pensei ontem antes de adormecer.
Procuro-a. Procuro-a outra vez. Noutra assoalhada. Descubro que está suja
dentro da máquina de lavar. Que bom. Outra roupa. Pensa. Pensa rápido. Visto a
primeira coisa que aparece. Olho-me ao espelho: “Se quiseres actuar no circo
Chen, estás óptima”. Tiro tudo. Pensa. Pensa. Procuro. Encontro. Olho ao
espelho. Está tudo muito lindo. O pequeno-almoço. Bebe a água com limão. Diz
que faz bem. Se diz, eu bebo. Não é bom. Mas bebo. O chá verde, a torrada, as
vitaminas a meio do pequeno-almoço. Os comprimidos só me chegam ao estômago se
os empurrar com torrada. O refluxo dá-me problemas, os comprimidos precisam de
ajuda com o caminho. A torrada é o gps certo. Outra vez para a casa de banho.
Lavo os dentes. Lentes de contacto postas. O creme hidrante, a maquilhagem. O
estojo cai no chão. Merda. O pó compacto parte-se em mil bocados pelos azulejos.
Estão a brincar comigo? Apanho os bocados maiores de pó compacto e volto a
metê-los todos na caixa. O que era antes uma superfície lisa, é agora um
amontoado de bocados de pó, mal arrumados. Que se lixe. Vou continuar a usar
isto assim até poder comprar outro. Passo papel higiénico pelo chão. Tudo mal
limpo. Fecho os olhos para não ver. Acabo a maquilhagem. Penteio-me. Seco o
cabelo. Saio da casa de banho. Procuro o saco do ginásio. Procuro no cesto a
roupa lavada e passada do ginásio. Atiro tudo lá para dentro. Procuro uma peça
de fruta. Um iogurte. Tenho tudo. Visto o casaco. Procuro freneticamente a
chave do carro. Encontro. Procuro mais freneticamente a chave casa. Encontro.
Procuro a mala. Estava aqui. Tenho a certeza. Encontro. Pego no saco do ginásio
e saio de casa. Cumprimento a vizinha. “Bom dia, dona Manuela, como está?”;
“Bem e a menina?”; “Também, obrigada”. Chego ao carro. Merda. Esqueci-me do
telemóvel. Deixo o saco do ginásio no carro e volto para casa a correr.
Encontro a dona Manuela. “ Então, menina, esqueceu-se de alguma coisa?”; “Sim,
do telemóvel”; “Pois, quem não tem cabeça, tem pernas”; “Oh dona Manuela, você
é amorosa, mas já ia à merda com a piadinha. Sabe há quantas horas começou o
meu dia?” –Só lho disse mentalmente, o que tive foi uma espécie de espasmo
bocal, o que lhe fiz não se podia chamar sorriso. Entro em casa. Vou à casa de
banho. Lá está o pó compacto todo espalhado no lavatório. Lá lá lá, não estou a
ver nada. Tiro o telemóvel do bolso do robe e fujo de casa. Faço outro espasmo
à dona Manuela. Ela diz qualquer coisa que já não ouço. Ao volante do carro dou
por mim a pensar “ Quem não tem cabeça tem pernas”. Aquilo não era assim tão
estúpido como me pareceu. Se pensasse bem era possível que tivesse dado a volta
ao mundo com as minhas pernas, por não ter cabeça. Quilómetros e quilómetros
feitos desnecessariamente com este corpo que pelos vistos se me acaba no
pescoço. Eu, afinal, a lenda da menina sem cabeça.
Lisboa, 24 de Abril de 2013