sábado, 28 de setembro de 2013

- Crónica de uma manhã de Sábado -

Saí de casa para tomar o pequeno-almoço, para ir às compras e fazer tudo o que uma mulher adulta faz quando é adulta. Como nem sempre o fizera sentia-me muito realizada com os pequenos gestos que tanto me faziam lembrar a minha mãe. Entrei no café e o senhor começou a servir-me muito antes de lhe fazer o pedido, ele sabia sempre o que eu queria e nem comia o mesmo todos os dias. Talvez visse pela forma como eu olhava para a montra dos bolos e dos pães. Sentei-me à espera e fiquei a comer, enquanto a senhora dos cabelos brancos e curtos, falava com tal entusiasmo de política que temi pela vida do senhor Carlos António mais do que uma vez. Para ela ganhava o Ps, chamava os comunistas de comodistas, mas que tinha a certeza que esses iam ganhar mais umas câmaras. O senhor Carlos António dizia-lhe que sim a tudo. Ela comoveu-me com algumas partes do seu discurso, talvez tivesse cerca de 70 anos. Falou da revolução, de como a sua mãe, viúva muito nova, trabalhava de dia e noite para meter comida na boca dos cinco filhos. “Tirava da boca dela para nos dar a nós. Eu dormia com a minha mãe, porque era a única hora do dia que podia estar com ela, de resto estava sempre a trabalhar”. Ouvia tudo com muita atenção e às tantas só me apetecia fazer-lhe perguntas sobre aquela nobre senhora, que viveu naquele tempo. Antes e depois da revolução.
A meio da conversa e não sei porquê, o senhor Carlos António dissera-lhe que ia abrir uma igreja nova e que ela já podia ir rezar. Ela olhou-o de forma quase ofendida. “O quê? Abriu uma igreja? Eu não sou dessas igrejas… Esses tipos estão cheios de dinheiro por causa da dízima. É vê-los a passear em iates e belos apartamentos com vista para o mar no país deles e depois vêm para aqui com essas igrejas”. “A culpa é das pessoas que lá vão”, disse-lhe o senhor Carlos António. E de cada vez que ela se entusiasmava mais a defender os seus pontos de vista dizia o nome dele mais vezes numa frase. Geralmente, no início, no meio e no fim. “Palavra de honra, senhor Carlos António, as pessoas estão cá desesperadas, sem fé, sem nada para acreditar, senhor Carlos António, as pessoas animam-se mais com aquelas xaropadas que lhes dizem nessas igrejas, senhor Carlos António. Não as podemos levar a mal, muitas vêm de lá mais arrebitadas, senhor Carlos António.” Ela prosseguiu mais entusiasmada do que nunca “ Não se preocupe, porque se a igreja vai abrir nesse prédio as pessoas correm com eles de lá num instante. Quando eles começarem com aquelas cantorias e as rezas muito altas, senhor Carlos António, serão corridos num instante. Vai ver, senhor Carlos António. Eu tive uma igreja dessas num dos prédios em que vivi, senhor Carlos António, e ora, ao fim-de-semana é quando uma pessoa quer dormir até mais tarde, cansada de acordar cedo, senhor Carlos António, andamos nós a semana toda. E aquilo é um disparate, ainda não eram dez da manhã e acordavam-me sempre com aquela pianola a tocar!”. Eu engasguei-me com o galão, adorei que ela tivesse dito “pianola”. Aliás, “pianola” e “igreja” na mesma frase seria algo para me fazer rir sempre.
Quando achava que aquilo não podia melhorar, entrou uma mulher de olhar vazio, pernas trémulas, dificuldades motoras, dificuldades na fala a perguntar os preços de todos os bolos. Fiquei com pena, pensei que não tivesse dinheiro e quando lhe ia pagar um bolo, o senhor Carlos António fez-me sinal com a cabeça que não. Não percebi muito bem. Entra logo de seguida, o “amigo” desta senhora, também ele de pernas trémulas, movimentos atabalhoados, fala muito enrolada. Pessoas muito medicadas que vêm do fundo da rua.
Ela comeu um bolo, um croissant de chocolate com uma camada de açúcar branco, muito fina por cima. Conseguiu encher-se de açúcar, a roupa, o chão, o balcão, de repente parecia que tinha caído um nevão. Era preciso ter talento para espalhar o açúcar daquela maneira, quase até à meia de leite do seu amigo, que ela lhe roubou e deu um gole, sem lhe pedir.
A primeira senhora olhava-os com menos discrição que eu, no fundo, estava aborrecida porque lhe interromperam o discurso. Decidiu voltar à política. Claro que o senhor das mãos trémulas, o da meia de leite com o açúcar da outra, também tinha uma palavra a dizer. A senhora dos cabelos brancos levanta-se do banco porque não lhe apetecia passar o resto da manhã a discutir com uma pessoa que mal se percebe o que diz. O homem da meia de leite disse: “Olhe que ganhe o melhor no Domingo.” Ela não concordou com aquilo, mas queria ir-se embora. “Que ganhe o melhor, não ´bem assim”, e o senhor da meia de leite só lhe disse: “Que ganhe o sporting!”. Perante isto, paguei e saí.
Ao voltar das compras vinha muito carregada, como é meu apanágio. Não sei porque insisto em não levar o carro para o supermercado. Não sei porque insisto em achar que vou só trazer três coisinhas. É mentira. Nunca trouxe só três coisinhas de um supermercado. E lá venho eu, a arrastar-me com os sacos, um no ombro, outro em cada mão, mais a mala a cortar-me a circulação. Páro de tantos em tantos metros para aliviar os dedos dos sacos, para melhorar tudo, começa a chover. Aqueles pingos souberam-me bem. Nada de molhas, nada de grave. Continuei pelo passeio e quase a chegar a casa faço uma nova paragem para aliviar os dedos dos sacos de plástico, para ajeitar o casaco que trazia à cintura e que insistia em soltar-se, tudo uma complicação.
Uma senhora aproxima-se de mim e olha-me para os sacos, em seguida para mim e começa a aproximar-se. Trazia uma fita a prender-lhe os fios de cabelo cinzentos, apanhados com um elástico em baixo. Os olhos eram de um verde baço, quase que podia jurar que tinha cataratas. Nos lábios trazia um batom rosa, da mesma cor da fita e quando me sorriu os dentes eram encavalitados e de um amarelo escuro, dentes que vivem há muitos anos na boca, mas eram dela, todos dela. “A menina desculpe, hoje é sexta-feira ou é sábado? É sexta, não é?”. Respondi-lhe com simpatia. “Não, hoje é sábado, minha senhora”, “Ando atrasada. Já não sei a quantas ando, esta minha cabeça…” e eu sorri-lhe e começo a pegar nos sacos porque a senhora não parava de me olhar fixamente, mas ela continuou “Que deus a proteja, menina e lhe dê tudo de bom”, respondi-lhe, “Obrigada, igualmente para senhora”. Começo a preparar-me para me afastar e ela continua a olhar-me “ É uma menina muito bela” e olha-me para o rabo e segue a dizer “Ó, ó… Quem me dera…” – O ambiente de repente ficou estranho e ali estava eu em frente da senhora de noventa anos que me contemplava o corpo. Passaram-me várias coisas pela cabeça, que seria uma pessoa sozinha, que teria saudades do seu corpo jovem e sem rugas e tentei animá-la: “A senhora também deve ter sido uma rapariga muito bonita e eu também hei-de ter a sua idade, um dia, quem sabe”. Ela continuou meio desapontada, como se eu tivesse perdido o seu ponto vista “A menina é muito bela… Até um dia destes, espero vê-la mais vezes”.

 O ambiente voltou a ficar estranho, voltei para casa e tentei não pensar muito no assunto. Afinal só tinha mesmo saído para tomar o pequeno-almoço e comprar o lanche para a minha avó, mas acho que fui pelo caminho errado da floresta. 

sábado, 21 de setembro de 2013

Limpeza Anual

Está na hora de fazer a limpeza anual
Trocar de roupas
Deitar fora o que não nos serve
Mandar embora o que não nos faz falta
Arrumar as prateleiras, esvaziar as gavetas
Passar um pano no passado e no futuro
Puxar o lustro ao presente e deixá-lo a brilhar
As limpezas anuais custam
O pó, o insuportável pó
A mim provoca-me alergias
Uma defesa do meu corpo a coisas estagnadas
Esquecidas pelo tempo
Engolidas por dias cinzentos e aborrecidos

Embalo tudo
Ponho película aderente, muita,
No que não quero ver, devolvo ao remetente
Não me fazem falta, nunca precisei delas
Se não preciso, não as quero na minha vida
Quem é que precisas de coisas
Quando tem sonhos e desejos
‘Águas paradas não movem moinhos’
Disse-me a minha mãe muitas vezes
Está na hora de fazer a limpeza anual
De começar a rezar
De começar a chorar
Dizer adeus às roupas velhas

Acenar aos borbotos e elásticos soltos
Às recordações esquecidas
Que se arrastam sem saberem de onde vêm
Onde moram, quem são
Livremo-nos de tudo que não precisamos
Do que não sentimos,
Que não dissemos por palavras ou afectos
De nada serve. Pesos mortos.
Não se pode viver embrulhado em teias de aranha
Com bolas de naftalina nos olhos e na boca
Sabão azul e branco nas mãos
Recortes de jornais nos ouvidos
Não, não se pode viver assim

Está na hora da limpeza anual
E que no fim se faça o teste do algodão
Em cada palavra, gesto… Poro.
Começo eu.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Povo que já não lavas no rio

Às vezes canso-me. Este povo português cansa-me. Não sabem fazer mais nada do que estar em redes sociais, canais de partilhas de vídeo, de rabo sentado no sofá, muito confortáveis e cheios de azedume a criticar trabalho e pessoas alheias, fazendo muitas vezes comparações despropositadas. A criticarem os que tiveram coragem de meter alguma coisa em prática, de arriscar. Queridos velhos do Restelo, treinadores de bancada, políticos do sofá, críticos de cinema, televisão, teatro, cultura em geral, desafio-vos a levantarem o rabo e a fazerem alguma coisa que tenha interesse e importe a alguém. Tipo, comam uma salada de fruta, leiam algumas páginas de um bom livro. Tratem da vossa roupa em casa. Lavem-na no rio. Ocupem-se. Tenho a certeza de que se sentem melhor e com boa energia.

Desfoques

Tenho ido à praia de óculos porque me apetece, porque me estou a borrifar, porque sou muito crescida. Chego e guardo-os para não ficar com a marca dos óculos no nariz. Assim que os tiro na praia volto a ter 14 anos. O cabelo fica com mais volume. As pessoas que estão à minha volta deixam de ser pessoas para passarem a ser formas andantes, uma mancha cor de pele com duas cores coloridas se forem de biquíni ou só uma cor na zona das pernas se usarem calções. As pessoas são todas bonitas. Os que estão mais longe não têm sexo, são um híbrido esquisito que o cérebro não processa. Não sei que cor tem a bandeira. Não sei o que dizem as mensagens dos aviões. Não sei que expressões fazem as pessoas. Quando vou à água consigo saber onde é o meu lugar pela cor daquele rectângulo azul que presumo que seja a minha toalha. Gosto disto. Tiro os óculos e o mundo como o conheço, desaparece. Fico alienada de tudo à minha volta. Quando quero voltar a fazer parte do mundo, meto os óculos e lá está tudo outra vez. Sim... Há pouca coisa para fazer na praia e tenho que me entreter nos intervalos da leitura. Tiro os óculos. O mundo não está cá. Ponho os óculos... Tá, tá!
03/09/2013

O meu aniversário

Do dia 21 para o dia 22 de Agosto aguardei ansiosamente pela meia-noite, como se fosse Natal. Sabia que já tinha presentes à minha espera (esta ansiedade mais ao menos infantil aparece sempre no meu aniversário, no Natal e, às vezes, no dia da criança ainda espero que me calhe alguma coisa). Bebi um gin. Anos são anos. Quase adormecia com ele na mão, mas continuava a abanar a cabeça alegremente porque era dia de festa, cantam as nossas almas). Feita a coisa, vou dormir. Acordo. Qual é a primeira coisa a fazer? Obviamente confirmar no espelho se me apareceu algum cabelo branco durante noite. Não apareceu. É bom. Olho para o vestido que estava ensaiado há duas semanas e preparo-me para sair a acenar. Queen Elizabeth II aprende como se faz. Foi um dia maravilhoso entre amigos, família, presentes, presentes, presentes, presentes, presentes. Obrigada a todos que contribuíram para um dia tão feliz como de ontem. Obrigada pelas mensagens, vídeos, músicas. Sou uma pessoa de coração cheio e muito agradecida. (E os meus presentes são lindos). Obrigada, obrigada... (Agora sou eu em Amália).
23/08/2013