Saí
de casa para tomar o pequeno-almoço, para ir às compras e fazer tudo o que uma
mulher adulta faz quando é adulta. Como nem sempre o fizera sentia-me muito
realizada com os pequenos gestos que tanto me faziam lembrar a minha mãe.
Entrei no café e o senhor começou a servir-me muito antes de lhe fazer o
pedido, ele sabia sempre o que eu queria e nem comia o mesmo todos os dias.
Talvez visse pela forma como eu olhava para a montra dos bolos e dos pães. Sentei-me
à espera e fiquei a comer, enquanto a senhora dos cabelos brancos e curtos,
falava com tal entusiasmo de política que temi pela vida do senhor Carlos
António mais do que uma vez. Para ela ganhava o Ps, chamava os comunistas de
comodistas, mas que tinha a certeza que esses iam ganhar mais umas câmaras. O
senhor Carlos António dizia-lhe que sim a tudo. Ela comoveu-me com algumas partes
do seu discurso, talvez tivesse cerca de 70 anos. Falou da revolução, de como a
sua mãe, viúva muito nova, trabalhava de dia e noite para meter comida na boca
dos cinco filhos. “Tirava da boca dela para nos dar a nós. Eu dormia com a
minha mãe, porque era a única hora do dia que podia estar com ela, de resto
estava sempre a trabalhar”. Ouvia tudo com muita atenção e às tantas só me apetecia
fazer-lhe perguntas sobre aquela nobre senhora, que viveu naquele tempo. Antes
e depois da revolução.
A
meio da conversa e não sei porquê, o senhor Carlos António dissera-lhe que ia abrir
uma igreja nova e que ela já podia ir rezar. Ela olhou-o de forma quase
ofendida. “O quê? Abriu uma igreja? Eu não sou dessas igrejas… Esses tipos
estão cheios de dinheiro por causa da dízima. É vê-los a passear em iates e
belos apartamentos com vista para o mar no país deles e depois vêm para aqui
com essas igrejas”. “A culpa é das pessoas que lá vão”, disse-lhe o senhor
Carlos António. E de cada vez que ela se entusiasmava mais a defender os seus
pontos de vista dizia o nome dele mais vezes numa frase. Geralmente, no início,
no meio e no fim. “Palavra de honra, senhor Carlos António, as pessoas estão cá
desesperadas, sem fé, sem nada para acreditar, senhor Carlos António, as pessoas
animam-se mais com aquelas xaropadas que lhes dizem nessas igrejas, senhor
Carlos António. Não as podemos levar a mal, muitas vêm de lá mais arrebitadas,
senhor Carlos António.” Ela prosseguiu mais entusiasmada do que nunca “ Não se
preocupe, porque se a igreja vai abrir nesse prédio as pessoas correm com eles
de lá num instante. Quando eles começarem com aquelas cantorias e as rezas
muito altas, senhor Carlos António, serão corridos num instante. Vai ver,
senhor Carlos António. Eu tive uma igreja dessas num dos prédios em que vivi,
senhor Carlos António, e ora, ao fim-de-semana é quando uma pessoa quer dormir
até mais tarde, cansada de acordar cedo, senhor Carlos António, andamos nós a
semana toda. E aquilo é um disparate, ainda não eram dez da manhã e
acordavam-me sempre com aquela pianola a tocar!”. Eu engasguei-me com o galão,
adorei que ela tivesse dito “pianola”. Aliás, “pianola” e “igreja” na mesma
frase seria algo para me fazer rir sempre.
Quando
achava que aquilo não podia melhorar, entrou uma mulher de olhar vazio, pernas
trémulas, dificuldades motoras, dificuldades na fala a perguntar os preços de
todos os bolos. Fiquei com pena, pensei que não tivesse dinheiro e quando lhe
ia pagar um bolo, o senhor Carlos António fez-me sinal com a cabeça que não.
Não percebi muito bem. Entra logo de seguida, o “amigo” desta senhora, também
ele de pernas trémulas, movimentos atabalhoados, fala muito enrolada. Pessoas
muito medicadas que vêm do fundo da rua.
Ela
comeu um bolo, um croissant de chocolate com uma camada de açúcar branco, muito
fina por cima. Conseguiu encher-se de açúcar, a roupa, o chão, o balcão, de
repente parecia que tinha caído um nevão. Era preciso ter talento para espalhar
o açúcar daquela maneira, quase até à meia de leite do seu amigo, que ela lhe
roubou e deu um gole, sem lhe pedir.
A
primeira senhora olhava-os com menos discrição que eu, no fundo, estava
aborrecida porque lhe interromperam o discurso. Decidiu voltar à política.
Claro que o senhor das mãos trémulas, o da meia de leite com o açúcar da outra,
também tinha uma palavra a dizer. A senhora dos cabelos brancos levanta-se do
banco porque não lhe apetecia passar o resto da manhã a discutir com uma pessoa
que mal se percebe o que diz. O homem da meia de leite disse: “Olhe que ganhe o
melhor no Domingo.” Ela não concordou com aquilo, mas queria ir-se embora. “Que
ganhe o melhor, não ´bem assim”, e o senhor da meia de leite só lhe disse: “Que
ganhe o sporting!”. Perante isto, paguei e saí.
Ao
voltar das compras vinha muito carregada, como é meu apanágio. Não sei porque
insisto em não levar o carro para o supermercado. Não sei porque insisto em
achar que vou só trazer três coisinhas. É mentira. Nunca trouxe só três
coisinhas de um supermercado. E lá venho eu, a arrastar-me com os sacos, um no
ombro, outro em cada mão, mais a mala a cortar-me a circulação. Páro de tantos
em tantos metros para aliviar os dedos dos sacos, para melhorar tudo, começa a
chover. Aqueles pingos souberam-me bem. Nada de molhas, nada de grave.
Continuei pelo passeio e quase a chegar a casa faço uma nova paragem para aliviar
os dedos dos sacos de plástico, para ajeitar o casaco que trazia à cintura e
que insistia em soltar-se, tudo uma complicação.
Uma
senhora aproxima-se de mim e olha-me para os sacos, em seguida para mim e
começa a aproximar-se. Trazia uma fita a prender-lhe os fios de cabelo
cinzentos, apanhados com um elástico em baixo. Os olhos eram de um verde baço,
quase que podia jurar que tinha cataratas. Nos lábios trazia um batom rosa, da
mesma cor da fita e quando me sorriu os dentes eram encavalitados e de um
amarelo escuro, dentes que vivem há muitos anos na boca, mas eram dela, todos
dela. “A menina desculpe, hoje é sexta-feira ou é sábado? É sexta, não é?”. Respondi-lhe
com simpatia. “Não, hoje é sábado, minha senhora”, “Ando atrasada. Já não sei a
quantas ando, esta minha cabeça…” e eu sorri-lhe e começo a pegar nos sacos
porque a senhora não parava de me olhar fixamente, mas ela continuou “Que deus
a proteja, menina e lhe dê tudo de bom”, respondi-lhe, “Obrigada, igualmente
para senhora”. Começo a preparar-me para me afastar e ela continua a olhar-me “
É uma menina muito bela” e olha-me para o rabo e segue a dizer “Ó, ó… Quem me
dera…” – O ambiente de repente ficou estranho e ali estava eu em frente da
senhora de noventa anos que me contemplava o corpo. Passaram-me várias coisas
pela cabeça, que seria uma pessoa sozinha, que teria saudades do seu corpo
jovem e sem rugas e tentei animá-la: “A senhora também deve ter sido uma
rapariga muito bonita e eu também hei-de ter a sua idade, um dia, quem sabe”.
Ela continuou meio desapontada, como se eu tivesse perdido o seu ponto vista “A
menina é muito bela… Até um dia destes, espero vê-la mais vezes”.
O ambiente voltou a ficar estranho, voltei
para casa e tentei não pensar muito no assunto. Afinal só tinha mesmo saído
para tomar o pequeno-almoço e comprar o lanche para a minha avó, mas acho que
fui pelo caminho errado da floresta.