quinta-feira, 23 de maio de 2013

O fogo


Fazes-me mal
E eu caio, caio vertiginosamente
Não fui eu que comecei o fogo
Sou de fácil combustão
Só queria o calor
Acabo a varrer as cinzas
Para um monte
Com os olhos a arder
Despejo-as na sanita
Em breve chegarão ao mar
E tudo será melhor

Tenho a certeza
Não fui eu que comecei o fogo
Mas gostei de o sentir tão perto
Todo o meu corpo
Iluminado por aquela luz
Cor-de-laranja
A alma em labaredas
As palavras como acendalhas
As minhas mãos como fagulhas
E o olhar fez-se num clarão

Não chamem ninguém
Não fui eu que comecei o fogo
Mas quero vê-lo arder
E a parte final é tão bonita
A intermitência do calor, da luz
Sei que sou altamente inflamável
Só queria que tudo fosse especial
Que eu fosse especial
Que o meu sangue não fosse lava
O meu coração uma bomba-relógio
A minha cabeça um garrafão de gasolina


Que o fogo não deixasse cinzas
Nem marcas profundas
Na alma que se fez em labaredas
As palavras em acendalhas
E as minhas mãos como fagulhas
Tudo em mim é inflamável
Piora em dias de vento e calor
E continuarei sempre a arder
Fazes-me mal
E eu caio, caio vertiginosamente
Não fui eu que comecei o fogo.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A melancolia vicia-me


A melancolia vicia-me
Com um trago de fumo
Um gole numa bebida
Que me faz arder a garganta
Às vezes amarrota-me por dentro
Fazendo estilhaçar pedaços
Da minha velha alma
Espantando os pássaros
Que vivem pousados nela
Batem as asas com tanta força
Que às vezes o peito dói-me

Esse silêncio diz mais do que
Qualquer palavra
Tem cheiro de terra molhada
E de madeira ardida numa lareira antiga
A tua não expressão arderá
Para sempre em mim
Sem quaisquer vestígios de cinza

A melancolia vicia-me
Como uma droga 
Que não posso largar
O sorriso mudo
Atravessa-me como uma espada
Como uma dor que preciso sentir
Para saber que ainda
Habito neste corpo

A melancolia vicia-me
Porque é só minha
Pessoal e intransmissível
Inexplicável por palavras
Música, dança
Não vem nos livros
Não se aprende na escola 

Não quer dizer que sinta o que digo
Muito menos que não sinta o que
calo. 
As palavras dizem tão pouco
Escondem tanto
Colam-se ao céu da boca 
Como uma hóstia
Para serem projectadas 
A metros de distância
Em todas as direcções
Indiscriminadamente
São balas.

Não te quero atingir
Nunca vou ter as respostas
Que podiam melhorar tudo

A melancolia vicia-me
Substituo os pássaros silenciosos
Os que vivem pousados 
Na minha velha alma
Pelo som de harpas
Cordas de violinos 
E bailarinas em pontas
O truque é nunca mostrar
O lado do avesso, 
Aquele que se incendeia
No estômago e revira tudo
Que faz ir para o norte
Quando o sentido é o sul.

Há dias de luz
Em que a melancolia e a comédia
Se entrelaçam como lã num tear
E fico naquele bordado dias sem fim
Tudo se agarra a mim
Com a força do universo
Não dá para seguir em frente
Deixar cair tudo ao chão
Sem voltar o rosto e reparar

No que se perde pelo caminho
No que desaparece
Da minha velha alma
Onde os pássaros gostam
De estar pousados
Batem as asas com tanta força
Que às vezes o peito dói-me.
A melancolia vicia-me. 

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O que importa é o sentimento

Acabadinho de ouvir no cabeleireiro. Conversa da senhora dos cabelos para a senhora das mãos e afins.
- Olha pá, para mim, pá, o que importa é o sentimento. Não me importa se é gordo, se é magro, preto, amarelo, alto ou baixo. É o sentimento. O que está lá dentro. É mesmo o sentimento. Mas tem que ser um bom partido. Se é para contar só comigo, não vale a pena. Ou se vive bem ou não. Nada menos que um bom partido.
(Penso:  Sou tão ridícula, não era esse sentimento. Era o outro. O outro que importava. Tu e a essa mentalidade de tesa). Ela continua.
- Tive um que uma vez me deu um serviço da vista alegre. Bem bonito. Branquinho com uma risca dourada. Nunca sai de moda. Uma preciosidade.
Senhora das unhas e afins remata: Vês? Esse ao menos já serviu para alguma coisa.
(Penso outra vez: Nunca soube escolher. Nenhum, nenhum me deu um serviço da vista alegre. Esquece qualquer aprendizagem que possas ter retirado e vai comer nos teus pratos do ikea. Ridícula, que ridícula).

sexta-feira, 3 de maio de 2013

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Um dia

Um dia.
Um dia viajo.

Um dia fujo. 
Aprendo a tocar piano. 
Canto ao espelho com uma caneta a fazer de microfone.
Aprendo a falar várias línguas fluentemente. 
Vejo desenhos animados o dia todo.
Pinto um quadro.
Ligo a três pessoas com quem não falo há muito.
Volto a estudar. 
Leio todos os livros que quero.  
Ando de baloiço. 
Faço bolas de sabão. 
Corro sem que as pernas me doam. 
Como as batatas fritas que me apetecerem. 
Escrevo um poema no prédio abandonado da cidade.
Faço um discurso em público sem que me faltem as forças.
Como um gelado sem me sujar. 
Atravesso a cidade com umas asas nas costas.
Compro toda a música que sempre quis ter.  
Faço uma viagem de comboio para um sítio ao calhas. 
Visto duas cores que não combinam.
Passo um dia inteiro calada.
Vou a um museu conhecido. 
Compro uma estante antiga.
Como três fatias de bolo com chocolate. 
Não choro a ver filmes sobre animais.
Tomo um banho imersão cheio de espuma. 
Fico na relva a ler o dia todo.
Não enjoo a andar de carro. 
Não me assusto facilmente. 
Não me comovo com tudo. 
Participo em discussões sobre política.
Deixo de ter medo de andar de avião.
Não terei medo de envelhecer
Serei precisa e metódica. 
Perceberei tudo o que é difícil.
Um dia. 


  





Epifania

Não são os erros que definem as pessoas. É a forma como os corrigimos e nos comportamos perante o erro

A vida dói-me.
É assim na maior parte do tempo
Sejam os dias pequenos
Maiores
A vida dói-me.
Revolve-me.
Nunca me deixa em paz.
Um dia que seja.
A dormência sempre me doeu.
O desmoronar das pequenas coisas
As pedras a soltarem-se
Lentamente do meu coração
Os pensamentos a saltarem um a um
Da minha cabeça
Para o abismo
Para o desconhecido
Disseram que com idade ia melhorar
Mentiram-me.
Tudo se amarfanhou mais um pouco
Dentro de mim.
O vazio.
Onde continuo a pairar
À espera não sei de quê
A solidão continua a agarrar-se
Ao meu corpo, a abraçar-me
Não se solta, 
Como se fossemos uma só
Como se não houvesse um ponto
Em que nos dividíssemos.
A idade, o tempo
Dificilmente melhoram o que sentes
O que és,
O padrão do teu pensamento
Os contornos do teu coração.
Não sei se enquanto há vida,
Há esperança.
O que é isso? A esperança
É um bicho estranho de se ter
Dá trabalho a alimentar, a educá-la
Abro-lhe a janela
E mando-a embora.
É mais fácil assim.
Não preciso de esperança
Para manter o optimismo
Para me rir.
Fico olhá-la através da janela
E escrevo no vapor deixado
Pela minha respiração
“Go away”.
Eu fico bem.
Sempre fiquei.
A vida dói-me.
Revolve-me.
Nunca me deixa em paz.
Um dia que seja.
A dormência sempre me doeu.
O desmoronar das pequenas coisas
As pedras a soltarem-se
Lentamente do meu coração
Os pensamentos a saltarem um a um
Da minha cabeça
Para o abismo
Para o desconhecido
Não espero melhoras
Com o tempo, com a idade
O dia em que melhorar
O vazio.
Eu serei outra coisa qualquer
Muito longe do que se conhece
Do que se sente,
Do que não se vê.
E não consigo mostrar.