domingo, 21 de fevereiro de 2016

Perigo Produto Inflamável

Não sabe o brilho que tem
A força que sente, o calor que lhe cresce
É uma chama 
Que te encanta e atrai
Brilha no escuro e ri-se de ti
Aquece-te as noites
O coração e a alma
Dança contorcendo-se em mil labaredas
Num jogo infinito de incandescências
Inflama-se sozinha
Ardendo em várias frentes
Ficas a vê-la consumir-se
Ficas a ser consumido
Enquanto afundas no teu bloco de gelo
Atira-se a ti e consola-te o espírito
Riem-se e incendeiam-se os dois
Ela não sabe a força que tem
Nunca se apaga
Nunca pára de queimar
Nunca pára de te arder
Queima-te e afunda-te
Até seres um bocado de cinzas
Que ela junta num monte
Com as mãos em labaredas dançantes
Atira-as pelo ar e faz-te desaparecer
Para sempre.
As fagulhas riscam o céu
Eclipsam-se em partículas celestes
E ela entra em autocombustão.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

- Ana Rita, que tentaram enfiar novamente o barrete à tua avó, mas têm que morrer e nascer outra vez. Devem achar que por eu ter 83 anos sou estúpida. Nunca fui e hei-de ir esperta para a cova. - Diz a avó Mercedes. E eu pergunto-lhe o que aconteceu, a avó prossegue. - Ana Rita, ligaram-me de uma clínica a dizer que tinha de ir lá fazer um exame qualquer e eu fui a achar tudo muito estranho. Ligaram-me a um aparelho com uns fios e colaram-me meia dúzia de adesivos nas costas e eu fiquei ali a olhar para elas, para as doutoras da mula russa. (Aqui eu já me começo a rir). Assim que elas saíram eu abri o comando daquilo para ver se estava ligado a alguma coisa e estava, a tua avó é que não estava a ver os fios. Menos mal. Isto passou-se. Só te sei dizer que no fim dizem-me que se quiser fazer o tratamento dos adesivos ou do raio que as parta e deixar de ter dores tenho de pagar cinco mil euros e eu aí começo a perceber... Disse-lhes que não tinha dinheiro "Oh Dona Mercedes nem lá em casa no mealheiro?" - Perguntam elas, Ana Rita. E eu disse-lhes que tinha um grande mealheiro, um dinheirinho junto, mas que tinha gasto tudo na semana passada num andar para o teu pai. "Avó, não podias ter dito só que não estavas interessada? Nem valia a pena inventar". - Elas perguntaram onde ficava o andar e eu disse-lhes que ficava na quinta da Curraleira e que ela podia ir lá conhecer o andar se quisesse. "Avó, onde é que fica isso?" - É um bairro de barracas que há ali para os lados da estrada de Chelas. Espero que ela vá lá visitar o andar, ela e a amiga dela. As vacas. - "Avó, não consigo parar de rir, mas és a maior" - E mais, Ana Rita, nada me tira da ideia que tinham lá um gravador a fazer vozes de pessoas, como se aquilo estivesse cheio de gente porque quando eu saí do pseudo-consultório só lá estava um velho sentado, feito com eles, de certeza. Não havia viva alma naquele sítio. As vacas! - "Avó, eu vou averiguar o sítio, mas obrigada por este momento. Quando eu estiver sem ideias vou passar a ligar-te".
It runs in the family.
heart emoticon

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Está tudo ao contrário 
As prioridades tropeçam umas nas outras
Abalroam e empurram para sítios
Onde não há nada de novo, áridos
Desprovidos de sentido, beleza e qualquer sensibilidade
Cidades inteiras feitas de construções mentais
Sustentadas em pilares do que era para ser
Ou do que se quer que seja
São ruínas
Já lá não mora ninguém,
As plantas morreram
E há um gato preto ou outro aos caixotes do lixo
Há bocados de cartão e sacos de plástico pelo ar
Edifícios cinzentos sem paredes, sem telhados
Tudo metade do que era
Há musgo a crescer entre os paralelepípedos 
Onde antes se ouviam gargalhadas     
As construções estão a desmoronar-se
Pedra por pedra, sonho por sonho
As prioridades destruíram todas as construções
Como uma detonação massiva de explosivos
É fácil abandonar o que dá trabalho por felicidade instantânea.
Construções antigas por falsas construções novas
É mais fácil pôr em causa as pessoas que estão 
Do que as que nunca estiveram verdadeiramente 
É fácil ser pequenino, assim mesquinho
O egoísmo é uma hera que ganha vida a cada passo
Sobe e enrola-se pelas pernas e pelos braços
Até tapar os olhos e não deixar ver
O que está à frente do nariz
Desce pela garganta e sufoca cada palavra
Dá mil voltas e em chegando ao umbigo
Espeta-se no coração como uma seta
Sempre soube que um dia seria maior que todas as coisas
Mas continuo a comer o biscoito errado
Eat me.
E diminuo cada vez mais, até mal me sentir
Mal ser notada, mal perceberem que ando por ali no meio
Aos tombos, aos pisões, à luta com pessoas
Que nunca me conseguirão ver.
Ao menos que a estupidez 
Me fosse servida numa flute de champanhe
Isso sim, seria uma bênção
Mais fácil de engolir, de saborear
Ter acesso ao outro lado do espelho tem um preço
E se fosse uma escolha, teria preferido a estupidez.
Encontrar as prioridades certas é como pescar um peixe vivo
Tentar agarrá-lo com as duas mãos
Não ser egoísta não é uma escolha, é uma saída
E as construções, essas, precisaram de ser feitas, 
Para serem desfeitas
Para darem lugar a outro tipo de arquitectura
A que serve interesses muito mais técnicos e funcionais
Do que estético-sonhadores.
Desta, os muros são muito altos e existe uma placa na porta
“Proibida a entrada aos que foram abençoados
Com o dom da estupidez”. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Perder alguém de quem se gosta

É como beber uma cerveja morta
Fica-se demasiado tempo com ela na mão
Perde-se  o gás e morre
É como ter um ataque cardíaco,
Dá uma dor no peito,
O sangue fica bloqueado e o oxigénio evapora
A cada sopro
O momento em que não se consegue respirar mais

Perder alguém de quem se gosta
É uma angústia e uma aflição
Que só quem já gostou nesta vida
Pode compreender
É ir a correr e levar um pontapé no estômago
É cair e costas do alto de uma montanha bem alta
É o momento a seguir ao comboio passar
A três centímetros de ti.

Perder alguém de quem se gosta
É um mergulho de chapão
Aquele momento do sonho em que parece que
Se cai, mas se está no mesmo sítio.
É um doce azedo
Uma cama de rede que rompe
É ficar soterrado debaixo de um prédio
Caminhar com bolhas nos pés

Perder alguém de quem se gosta
É o sol a ir-se embora e aragem fria que se levanta
Sabe a roupa molhada colada ao corpo
Por mais de um par de horas
São peões na estrada sem saber como vai acabar
Morrer um bocadinho ficando vivo
É ser consumido de dentro para fora
São gotas frias de chuva na cabeça

É uma luta entre a glória do que se perde
E o desconsolo do bom que fica
Das coisas que quebram mas não partem
Que doem mas não ferem

É o que é perder alguém

O meu amor

O meu amor é uma laranja. De manhã é ouro, de tarde é prata e à noite mata. 

terça-feira, 16 de junho de 2015

Se achas que não sinto 
Por me estar a rir
Não sabes nada
Se achas que não reparo
Por estar a falar
Ou a olhar na direcção oposta
Não sabes nada
Continuo a ser atingível
Um alvo fácil
Que se esconde atrás
De um acordo antigo
Feito no passado
Quando pensavam
Que não estava a ouvir
Ou não tinha idade para perceber
E não devia ter
Fiz um pacto
Com a indiferença dissimulável
E se achas que não me magoa
Não sabes nada
Ou sabes tudo
Sabes que sempre quis
Ser inexpressiva
Que não me viesse tudo
Ao de cima
Aos olhos
Ao papel e à boca
Sempre quis ser outra
Não esta que tivesse coragem
O descaramento
De escrever tudo
Não sou como vês
Melhor, pior
Depende dos dias
Das horas
Da fome
Se achas que por dormir
Vivo descansada
Não sabes nada
Que o meu apetite voraz
É sinal de saúde
Não sabes, lamento
Nem eu sei
Pensava que era especial
Percebi que era só diferente
E tive de aceitar
Não para perceber tudo
Mas o suficiente.

sábado, 16 de maio de 2015

Disseram para os deixar
Para os pôr de parte e seguir noutras direcções
Disseram que deixasse os poemas irem
Caminharem sozinhos
Disseram que lhes desse asas
Não consigo
Sou a mãe deles
É impossível uma mãe separar-se dos filhos
Pode afastar-se, passar tempos fora
Sentir-se pressionada por eles
Mas abandonar os poemas: nunca.
São quem eu sou, fui eu que os fiz
Com amor e prazer
Mesmo quando não gosto deles
Não posso abrir a janela e dizer: adeus.
Disseram que podia ser mais feliz noutros lados
Ter mais notoriedade
Compreendo. Seria até agradável,
Se estivesse à procura de alguma notoriedade
Ou tipo de felicidade
É tudo sobre o isolamento,
O transe em que as mãos se mexem num teclado
Às ordens sabe-se lá do quê ou de quem
Um poeta uma vez disse que a primeira frase
De um poema é sempre dada por algo divino
O resto é trabalho.
Só os que vestem este fato é que percebem
O que ele quis dizer, só eles
O fato pode nem sempre servir bem,
Precisar de umas bainhas, de um botão pregado
Mas a vida é mais bonita deste lado
A terra vista daqui é um palácio
O céu é um mar
Como é que se deixa isto ir embora? Como?
Não posso libertar-me da rede
Onde me enrolo há anos e anos.
Melhor, não quero.
Tenho que escoar para algum lado
O que me corre nas veias
Disseram para os deixar e eu pensei
É impossível. Eles perseguem-me para todo o lado
Mais do que uma sombra,
Que uma assombração.
Ordenei-lhes que fossem
Recusaram-se a ir
Habitam no meu corpo há demasiado tempo
Sou propriedade deles por usucapião
São os poemas quem decide quando ficam

Ou vão. Eu sou só o mensageiro.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Evereste

Sabes que fizeste as pazes com o passado
Quando te ris dele, 
Quando consegues falar sem que as palavras 
Te pareçam injecções
Olhas para trás e tudo parece ter ficado
À distância de uma viagem de mota
Sem capacete num final de tarde
Simplesmente sabes ou vais saber
Quando o presente for o teu número
E deixar de te apertar
Quando parares de te pôr dentro de recordações
Que não são tuas, não são para ti
Aí sabes
Não precisas de erguer os braços para o céu
Ou fazer uma de dança estúpida de
Agradecimento e devoção
Se nunca te zangaste com o teu passado
És um sortudo
Quando te zangas o caminho é pior
Mais escuro e lamacento
Aprende-se mais
Não vale a pena forçar se não o fizeste antes
Se não sentiste antes
Não o vais viver no futuro
Não vale a pena fazer perguntas
Teriam de já ter nascido contigo
Deixa, vive a tua vida sossegado
Nascer cheio de perguntas e de inconformação 
Nem sempre é uma bênção
Sabes que fizeste as pazes com o passado
Quando te ris, 
Quando sobes para um banco
E vês tudo lá do cimo
Deixa-te estar
Para os outros é um banco
Para ti é o Evereste
Escalado a suor e fogo

domingo, 12 de abril de 2015

Migalhas

O que ficou em cima da mesa
Foram pensamentos
Deixados como migalhas
Tudo ali naquela confusão,
Mil bocadinhos
O que se fez quando não podia ser feito
O que não se fez quando devia ter sido feito
Parecem um espelho partido
Junto-as com os meus dedos
Prendem-se nas unhas
Não se querem soltar de mim
Faço desenhos com elas
Construo sonhos
Sopro-as,
Agarradas às minhas unhas
Formam todo um começar de novo
O final do que resta, do que ficou
A minha memória foi cortada às fatias
Antes destas migalhas ficarem esquecidas

Não consigo passar um pano e seguir
Respiro a melancolia que emanam
Como um vício
Que não consigo deixar
O silêncio destes mil bocadinhos
Prefiro enlouquecer
A viver sem elas,
A juntá-las repetidamente
Como se tivesse medo de perdê-las
Gosto de ser alimentada
Por estes restos
Descem pela minha boca
Como bolas de fogo
Aterram dentro de mim como borrões

A inteligência é demasiado cruel
Para quem a tem
As memórias são um piano em decadência
Não param de tocar
Umas vezes doces, outras lancinantes
As migalhas na mesa
São uma bênção
Aqueles mil bocadinhos
Ressuscitaram o que estava morto
Aqui dentro

E toda eu sou flores. 

sábado, 28 de dezembro de 2013

Sempre tive medo que a vida me parasse

Sempre tive medo que a vida me parasse
Que o mundo se acabasse 
Que as coisas que odeio se fossem embora
Houve alturas em que tive medo de mudar
Aceitar o que era
E que isso não é necessariamente mau
Medo de sentir o que sinto
O que não sinto
E de achar que sei o que todos sentem
Nem eles sabem
Tive de aprender a viver com as múltiplas 
Vontades, e às vezes, é assustador

Sempre tive medo que a vida me parasse

Que não houvessem dias de sol
Que a euforia desaparecesse
Medo de encontrar o que me faz falta
Se o dia em que vou saber o que quero chegar
O dia em que perco medo
Em que não preciso de procurar mais
Será o meu fim
Insuportáveis são as linhas rectas
Que a satisfação não me seja uma virtude
E os batimentos cardíacos me abrandem

Que a minha música não acabe nunca
Para que a minha vida não se acabe
Sou eu novamente com medo de mudar 
Não quero levitar por cima da vida
Ver-me lá em baixo
Agarrada a um molho de nadas
A ver a vida a passar