quarta-feira, 24 de abril de 2013

Quem não tem cabeça tem pernas


Era mais uma manhã daquelas em que o meu optimismo dizia que 45 minutos chegavam para todos os afazeres matinais. Acordar. Voltar a adormecer. Voltar a acordar. Pôr o despertador a tocar para dali a dez minutos. Tentar adormecer e ficar na contagem decrescente para o despertador. Dentro de oito minutos vou acordar. Cinco. Dois e meio. Toca a musiqueta. Vou aos tombos em direcção à casa de banho, mas a gata não me deixa entrar, encaminha-me para a cozinha. É lá que está a comida dela. Com um olho aberto e outro fechado abro a lata de comida, dou-lhe metade, fico enojada quando aquele molho gelatinoso com cheiro a hálito de gato, que por sua vez, cheira a comida de tartaruga, se me cola aos dedos. Mudo-lhe a água. Lavo as mãos. A cretina já nem dá pela minha presença, já atingiu o objectivo pretendido: comer. Retomo o caminho, aos tombos, para a casa de banho. Ligo o aquecedor. Dispo-me e entro na banheira. Tenho que esperar. A água demora a ficar bem misturada no chuveiro. Se entrar logo sinto claramente os pingos de água quente do lado esquerdo do chuveiro e os pingos frios do lado direito. Os pingos fundem-se uns nos outros como uma chuva de alfinetes. Sou a pessoa mais feliz do mundo durante os cinco segundos em que a água quente me desce pelas costas e me faz ter um arrepio pelo corpo. Deixa-te de merdas. Despacha-te. Lavo o cabelo com amaciador abundante. Merda. É amaciador. Dá para as pessoas que fazem as embalagens pensarem nas pessoas que têm miopia? Será assim tão difícil fazer o frasco do amaciador diferente do frasco do champô? Tiro o amaciador. Lavo com champô. Meto o amaciador. Volto a tirar.  Gel de banho. Acabo e fecho as torneiras. A roupa. Aquela que pensei ontem antes de adormecer. Procuro-a. Procuro-a outra vez. Noutra assoalhada. Descubro que está suja dentro da máquina de lavar. Que bom. Outra roupa. Pensa. Pensa rápido. Visto a primeira coisa que aparece. Olho-me ao espelho: “Se quiseres actuar no circo Chen, estás óptima”. Tiro tudo. Pensa. Pensa. Procuro. Encontro. Olho ao espelho. Está tudo muito lindo. O pequeno-almoço. Bebe a água com limão. Diz que faz bem. Se diz, eu bebo. Não é bom. Mas bebo. O chá verde, a torrada, as vitaminas a meio do pequeno-almoço. Os comprimidos só me chegam ao estômago se os empurrar com torrada. O refluxo dá-me problemas, os comprimidos precisam de ajuda com o caminho. A torrada é o gps certo. Outra vez para a casa de banho. Lavo os dentes. Lentes de contacto postas. O creme hidrante, a maquilhagem. O estojo cai no chão. Merda. O pó compacto parte-se em mil bocados pelos azulejos. Estão a brincar comigo? Apanho os bocados maiores de pó compacto e volto a metê-los todos na caixa. O que era antes uma superfície lisa, é agora um amontoado de bocados de pó, mal arrumados. Que se lixe. Vou continuar a usar isto assim até poder comprar outro. Passo papel higiénico pelo chão. Tudo mal limpo. Fecho os olhos para não ver. Acabo a maquilhagem. Penteio-me. Seco o cabelo. Saio da casa de banho. Procuro o saco do ginásio. Procuro no cesto a roupa lavada e passada do ginásio. Atiro tudo lá para dentro. Procuro uma peça de fruta. Um iogurte. Tenho tudo. Visto o casaco. Procuro freneticamente a chave do carro. Encontro. Procuro mais freneticamente a chave casa. Encontro. Procuro a mala. Estava aqui. Tenho a certeza. Encontro. Pego no saco do ginásio e saio de casa. Cumprimento a vizinha. “Bom dia, dona Manuela, como está?”; “Bem e a menina?”; “Também, obrigada”. Chego ao carro. Merda. Esqueci-me do telemóvel. Deixo o saco do ginásio no carro e volto para casa a correr. Encontro a dona Manuela. “ Então, menina, esqueceu-se de alguma coisa?”; “Sim, do telemóvel”; “Pois, quem não tem cabeça, tem pernas”; “Oh dona Manuela, você é amorosa, mas já ia à merda com a piadinha. Sabe há quantas horas começou o meu dia?” –Só lho disse mentalmente, o que tive foi uma espécie de espasmo bocal, o que lhe fiz não se podia chamar sorriso. Entro em casa. Vou à casa de banho. Lá está o pó compacto todo espalhado no lavatório. Lá lá lá, não estou a ver nada. Tiro o telemóvel do bolso do robe e fujo de casa. Faço outro espasmo à dona Manuela. Ela diz qualquer coisa que já não ouço. Ao volante do carro dou por mim a pensar “ Quem não tem cabeça tem pernas”. Aquilo não era assim tão estúpido como me pareceu. Se pensasse bem era possível que tivesse dado a volta ao mundo com as minhas pernas, por não ter cabeça. Quilómetros e quilómetros feitos desnecessariamente com este corpo que pelos vistos se me acaba no pescoço. Eu, afinal, a lenda da menina sem cabeça.

Lisboa, 24 de Abril de 2013

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